sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O LEGADO DE MIRACLEMAN

Arte de Alex Ross para a capa variante da edição 5 de Miracleman publicada pela Marvel Comics em 2014.

Alan Moore sobre a influência de Miracleman para a era moderna dos quadrinhos de super-heróis

Alan Moore: Já faz um bom tempo que não leio [Miracleman]. Mas, sim, foi provavelmente o primeiro lugar em que empreguei meus pensamentos sobre como um super-herói poderia ser tratado de uma forma mais efetiva – onde empreguei essas ideias de uma forma coerente. 

Kurt Amacker: E que deixou um legado no qual quase todos os heróis seguem o modelo que você criou com Marvelman e Watchmen. Ao invés de uma abordagem “mais direta” do heroísmo como encontrada na Era de Prata, todos os heróis são psicologicamente abalados. Todos eles têm problemas com bebidas, disfunções sexuais e casamentos arruinados. O que em si quase se tornou um novo status quo. 

Alan Moore: Sim, tornou-se. E posso dizer que sinto muito? Nunca foi minha intenção que todas as histórias fossem assim. A razão porque quis fazê-las dessa forma foi porque nada mais era assim. Queria fazer algo que fosse diferente. Se eu ainda estivesse – Deus me livre – fazendo quadrinhos de super-heróis hoje em dia, tal como o meu trabalho ABC de alguns anos atrás, eles seriam muito, muito diferentes do modelo de Watchmen ou Marvelman. Eles seriam muito mais sobre diversão – seja diversão intelectual ou diversão pura e simples – seriam muito mais sobre isso do que fazer qualquer revisionismo. Acho, em última análise, que essa abordagem que eu introduzi – pegar personagens já existentes e reinterpretá-los – provavelmente resultou em histórias em quadrinhos muito sombrias e nada divertidas. Não queria que todo mundo copiasse o que estávamos fazendo. E especialmente, se fossem fazê-lo, teria preferido que eles copiassem o frescor e a originalidade das ideias – e que conseguissem expressar um pouco da alegria que nós expressávamos, mesmo em Watchmen, Marvelman e Monstro do Pântano. Sim, houve passagens muito sombrias em todas essas histórias, mas houve também passagens de grande alegria. E me parece que as pessoas basicamente tiraram disso o que elas foram capazes de tirar – sobretudo uma atmosfera levemente depressiva e a ideia de que todo mundo tem que ser um psicopata sombrio e impiedoso. Mesmo personagens como Stanley e seus Monstros – será que deveriam ser reinventados como uma família de psicopatas sombrios? Isso roubou completamente dos quadrinhos uma grande parte do charme que, ao menos para mim, um dia eles já tiveram. Novamente, nunca foi pensado como uma abordagem geral para todas as histórias em quadrinhos. Foi só um experimento que eu tentei fazer, e funcionou melhor em alguns casos do que em outros. Sim, Marvelman e Watchmen – são histórias muito boas. Por outro lado, tentar fazer as mesmas coisas em A Piada Mortal, foi totalmente inapropriado.

Entrevista concedida ao site Mania, disponível em: http://www.mania.com/alan-moore-reflects-marvelman-part-2_article_117529.html

Trecho traduzido por Allan Sena.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

THE AUTHORSHIP UNCHAINED


The authorship unchained

Com a estréia do novo filme de Tarantino, a crítica volta a se chafurdar na política do cinema de autor, enaltecendo os filmes em que um diretor possui total liberdade criativa como os únicos que podem ser de fato classificados como obras de arte e não meros bens de consumo. Sou um grande fã de Tarantino, longe de mim, portanto, querer dizer que ele não é o autor de seus filmes (na verdade, ele é autor de filmes que nem mesmo dirigiu, mas só roteirizou), todavia, poucos parecem se questionar como pode ser equivocada e ultrapassada essa teoria de crítica cinematográfica (elaborada por André Bazin, e posta em manifesto por François Truffaut nos Cahiers du cinéma) que pensa a autoria do cinema como responsabilidade de um único indivíduo, ou seja, do diretor. Por que não pensar, ao menos, que esse nem sempre é o caso? Muitas vezes, todo um estúdio, os produtores ou outros realizadores (um ou mais, inclusive certos atores, roteiristas, etc.), e não o diretor, é que acabam sendo os reais responsáveis pela autoria de um filme. Podemos pensar, por exemplo, nos filmes clássicos de monstros da Universal, nos filmes da Pixar, nos roteiros de John Hughes, nos filmes produzidos por Jerry Bruckheimer e nos filmes com efeitos especiais de Ray Harryhausen. Não que não exista cinema de autor (de diretor), mas creio que precisamos de critérios para julgar o valor estético de certos filmes que não tomem como único princípio a ideia de que a autoria de um filme pertence (e deveria sempre pertencer) única e exclusivamente ao seu diretor, relegando à categoria de mero produto comercial sem qualquer valor artístico um "filme de estúdio", em que o diretor não tem total responsabilidade pela obra final. Por que ainda nutrimos essa superstição que reza que um excelente “filme de estúdio” é ainda esteticamente inferior a um excelente filme de autor (de diretor)? Por que não pensar que ambos possuem, talvez, valores estéticos diferentes, mas de igual relevância? É claro que tolher o poder de decisão de um (grande) diretor é sempre censurável, e que, quase sempre, estúdio e produtores não entendem nada de cinema (mas só de mercado), contudo, creio que, algumas vezes, por alguma sorte de alinhamento planetário, o embate entre estúdio, produtores, diretores e demais realizadores acaba se dando de maneira saudável, em benefício (também) do valor estético da obra. Ademais, nem sempre é o diretor que contém a maior visão artística, mas um produtor (por que não? temos como exemplo Tim Burton em "O estranho mundo de Jack"), um roteirista, um editor, um ator, um diretor de fotografia, etc, etc. Ainda que o diretor seja o responsável por conduzir todo um time de realizadores, muitas vezes, a visão que predomina, a vontade que se impõe, o poder de decisão criativo não se encontra nele ou somente nele, e isso não é necessariamente algo negativo, pois nem sempre é o diretor que possui maior talento artístico na equipe. Muitas vezes, o diretor apenas contribui com o seu talento para que um talento superior (de uma ou de várias pessoas, ou mesmo da soma de seu talento com o de um membro da equipe ou com o de toda equipe) possa vir a criar um objeto artístico. Alguns críticos da política de autor procuram argumentar que, na verdade, a autoria de um filme pertence não ao diretor, e sim ao roteirista, ora, mas isso nada mais é do que insistir no mesmo erro. Creio que deveríamos tentar pensar mais no cinema como sendo (pelo menos às vezes) uma obra de arte coletiva, em que nem sempre é possível determinar um único indivíduo como sendo o autor, em que nem sempre podemos determinar com exatidão nem mesmo a quem de fato compete a autoria, o que em nada altera o seu valor estético. Entretanto, o que seria da crítica sem o autor? Já não seria hora de libertarmos (um pouco pelo menos) a autoria, a despeito da cobiça da crítica?

terça-feira, 8 de junho de 2010

UNIDADE E IDENTIDADE



RECONCILIAÇÃO E COMUNHÃO

A festa de Babette é uma perfeita amostra de como o cinema não precisa necessariamente “devorar” a literatura por meio de filmes que constituem apenas um resumo modificado ou corrompido de uma grande obra. O diretor Gabriel Axel consegue, pelo contrário, elevar a linguagem do conto de Isak Dinesen a um patamar ainda mais rico e significativo. Como exemplo disso, pode-se indicar a força com que a trilha sonora surge como amplificadora e mesmo geradora de sentidos, sentimentos e emoções em vários momentos da narrativa. A música de Johannes Brahms e Wolfgang Amadeus Mozart estão presentes na narrativa de Isak Dinesen, mas tocam somente os corações daqueles já familiarizados com a obra dos mestres. No filme, contudo, podemos ouvir e sentir todo o exuberante calor do dueto de Don Giovanni (1787), de Mozart, cantado por Philippa e Papin, e entender melhor o porquê da atitude de Philippa ao renegar àquela volúpia paixão. Sem contar, é claro, com a belíssima trilha sonora original do filme, que nos transporta para aquele canto remoto da Dinamarca, para aquela solidão, para aquele clima gélido, para aquele modo de vida austero, severo e ao mesmo tempo suave e doce. Outro fator de completude da magia do conto de Dinesen proporcionado pelo filme, é a sua belíssima fotografia e iluminação. Como destaque, pode-se remeter à cena de Babette colhendo ervas ao pôr-do-sol e à cena em que a mesa do jantar é apresentada tanto aos convivas, quanto aos telespectadores prova de como a beleza se torna ainda mais deslumbrante quando efêmera. Não poderíamos deixar de mencionar o quanto o trabalho do diretor Gabriel Axel e de sua equipe conseguiu tornar o jantar de Babette muito mais apetitoso e até saboroso para o espectador. A preocupação do diretor em mostrar os bastidores da cozinha e a maneira como Babette prepara os pratos, todo o requinte da culinária francesa manipulada magistralmente pelas mãos daquela artista, faz com que nós aguardemos o resultado final de cada refeição com ansiedade e mesmo com uma inesperada fome. Mas é, sem dúvida, o trabalho dos atores que mais provoca inveja em quem apenas observa a degustação daquele jantar. Todos estão incríveis, porém, o general (Preben Lerdorff Rye) com certeza se sobressai; são seus comentários que tornam parte da promessa dos outros onze comensais uma tarefa ainda mais desumana, qual seja: anular o paladar. Apesar de se manterem firmes ao voto de não abrirem a boca, enquanto estivessem sentados à mesa, para comentar qualquer coisa sobre o jantar mas tão somente para louvar a Deus, vemos pela expressão dos rostos de todos os irmãos (atuação memorável de todos os atores) à chegada iminente para eles de um novo mundo, pleno de sabor, alegria e liberdade, em que todo o poder e a glória de seu Deus finalmente se lhes revelasse.

O estado experimentado pelos convidados do jantar oferecido por Babette ao final do banquete, pode ser mais bem aclarado mediante as palavras reconciliação e comunhão. Veremos, primeiramente, como o uso da palavra reconciliação pode ser justificado para explicar esse momento. Reconciliação assume aqui, o sentido mais amplo possível: o de uma completa reparação ante toda a intolerância dicotômica; um estado em que os pólos postos como antagônicos fazem as pazes, entram em acordo, em harmonia, e se esquecem finalmente de toda intransigência de um para com o outro. Um estado do mais perfeito enlace entre: sagrado e profano, passado e presente, mundo espiritual e mundo material, dever e desejo, amor e ódio, bem e mal, prazer e desprazer, ressentimento e esquecimento, crime e perdão, vergonha e despudor, carne e espírito, etc.

Gostaríamos de chamar atenção para um aspecto desse estado de reconciliação em especial: o do prazer carnal com o prazer espiritual. Na comunidade liderada pelos princípios do velho deão, todo os prazeres terrenos eram vistos como mera ilusão e engano, a verdadeira vida só poderia vir a ser desfrutada, com todo o seu deleite, no reino de Deus: “[os membros da congregação] renunciavam aos prazeres deste mundo, pois a Terra e tudo o que continha não passavam para eles de uma espécie de ilusão, e a verdadeira realidade era a Nova Jerusalém pela qual ansiavam” (Isak Dinesen, A festa de Babette). Durante os preparativos da festa, a congregação se apavora com a sedução dos prazeres que o desconhecido e o exótico podem vir a provocar. O sonho “sabático” de Martina ilustra bem essa tensão no momento em que Babette surge oferecendo-lhe uma taça de vinho: a tentação do prazer, o desejo de desfrutá-lo e o medo do que possa advir de seu usofruto.


Os prazeres da carne e as aspirações do espírtio são, no entanto, irreconciliáveis? O estado alcançado pelos irmãos da congregação após a ceia sugere que não. Mas qual seria esse tipo de prazer que poderia, sim, muito bem, se harmonizar com os desejos e as necessidades do espírito? O filósofo grego Epicuro (341-270 a. C.) nos oferece uma possível resposta. Fundador da escola epicurista, termo que, ainda hoje, é usado equivocadamente para designar àqueles que se entregam desvairadamente aos deleites da cama e da mesa, Epicuro estabeleceu o prazer como o fim último da vida. Mas o prazer de que nos fala Epicuro não se confunde com uma desmedida concupiscência, pelo contrário, semelhante prazer é uma espécie de equilíbrio entre prazer e desprazer. Para se chegar a desfrutar tal prazer, é necessário ponderar quais prazeres devem ser buscados e com qual intensidade se deve desfrutá-los, sendo assim, tanto a ausênsia quanto o exagero de prazeres provocam necessariamente o desprazer. É completamente errôneo, portanto, identificar desfrute do prazer com volúpia: “E, justamente porque o prazer é o nosso primeiro bem, aquele que recebemos pela própria natureza, não zelamos pela obtenção de qualquer prazer, mas deixamos de lado muitos, dos quais finalmente poderia resultar-nos um mal-estar maior ainda” (Epicuro, Carta a Meneceu). Para Epicuro, uma vida virtuosa e feliz não pode, contudo, significar total ausência de prazer: “Realmente não sei conceber o bem, se suprimo os prazeres que se apercebem com o gosto, e suprimo os do amor, os do ouvido e os do canto, e ponho também de lado as emoções agradáveis causadas à vista pelas formas belas, ou os outros prazeres que nascem de qualquer outros sentido do homem” (Epicuro, Antologia). Assim, uma vida de completa abnegação dos prazeres terrenos não representa, para Epicuro, um alimento que fortalece a alma, a qual, para ele, apesar de mortal, deveria existir em completa consonância com o corpo para que o Eu do homem alcance o estado de felicidade completa, a eudemonia. Por conseguinte, de acordo com Epicuro, os deleites que a vida oferece devem, sim, ser buscados como um verdadeiro alimento tanto para o corpo quanto para a alma (ou espírito), mas não com atitudes libertinas e intemperantes, e sim com prudência e comedimento, a fim de que se alcance o maior desfrute possível dos mesmos, o verdadeiro prazer: “Do mesmo modo que, na refeição, ele [o sábio] não faz questão absoluta da quantidade desmesurada, mais dá mais valor à preparação gostosa, igualmente na vida não se preocupa com o tempo que esta dura, mas sim com a delícia da colheita que ela lhe traz” (Epicuro, Carta a Meneceu). É talvez esse prazer desejado pelos epicuristas que a congregação experimenta ao degustar cada prato do jantar oferecido por Babette, no qual a quantidade não ultrapassou a medida necessária, mas fora preparado com extremo requinte e sofisticação, agradando não somente o paladar, mais provavelmente também o olfato, o tato e, com toda certeza a visão, proporcionando, assim, um prazer bem mais elevado para os convivas (e para o expectador).

A reconciliação entre corpo e espírito ocorrida no jantar mediante o desfrute de um prazer tal qual nos fala Epicuro, foi o elemento que proporcionou as demais reconciliações vistas no filme, porém, para Epicuro, as delícias da mesa não provocam, isoladamente, esse tipo de prazer. Se há uma forma requintada e caprichada, uma verdadeira arte como nos fala Babette, para o preparo das refeições, há também uma maneira de se alimentar que torna a apreciação da comida e da bebida muito mais saborosa. De acordo com Epicuro, essa “técnica” consiste em nos alimentarmos sempre na companhia de amigos.

A amizade, para Epicuro, era algo que merecia especial atenção. Segundo o filósofo suíço Alain Botton, Epicuro afirmava que havia três “ingredientes” para a felicidade: o primeiro é ter amigos, os outros são: liberdade ou auto-suficiência e uma vida bem analisada. Era por conta disso que Epicuro afirmava: “A faculdade de granjear amizades é de longe a mais eminente entre todas aquelas que contribuem para a sabedoria da felicidade” (Teses fundamentais anexados por Diógenes Laércio em “A vida dos filósofos”, § 27). Não foi à toa que, ao chegar a Atenas em 306 a.C, aos 35 anos, ele tomou uma resolução radical: comprou um casarão nos arredores da cidade, e convidou os seus grandes amigos para morarem com ele neste local que passou a ser conhecido como “o jardim”: “A casa era grande o bastante para todos terem privacidade e, ao mesmo tempo, poderem fazer refeições e conversar nas áreas comuns” (Alain de Botton, no documentário "Epicuro e a felicidade"). Para Epicuro, é sinal de sabedoria nunca fazer uma única refeição sequer sozinho, isto é, sem a companhia de amigos, visto que muito pior seria comer junto de quem nos é desagradável: “Antes de comer ou beber qualquer coisa, pense em companhia de quem você vai fazer isso, mais do que no que vai comer ou beber. Alimentar-se sem um amigo é para leões ou lobos” (Epicuro Apud Alain de Botton, "Epicuro e a felicidade"). Na ceia de A festa de Babette é, então, não somente a comida que proporciona o alcance de um prazer sublime, mas também o fato de velhos amigos desfrutarem daquela incrível refeição na companhia uns dos outros, louvando as graças de seu Deus, compartilhando as lembranças de antigas histórias, da memória da nobre figura de seu pastor, das palavras sábias proferidas por ele, de momentos agradáveis, arrependendo-se por antigos erros, pedindo desculpas e desculpando-se mutuamente . A comida agradabilíssima representa aqui o melhor motivo já oferecido para fazer com que grandes amigos se reúnam, se divirtam bastante e percebam toda a importância que cada um têm para a vida um do outro.

O resultado final do jantar de A festa de Babette pode igualmente ser esclarecido por meio da palavra comunhão. Os irmãos da congregação, que já há muito tempo vinham se desentendendo, vivenciam, pelo que é visto na película, um sentimento de pura identidade e unidade com o grupo, o que os leva a uma experiência indizível de vida e de se estar vivo. Vimos que a reconciliação entre carne e espírito foi proporcionada pelo sublime gosto do jantar e pelo fato dos irmãos o degustarem juntos, com pitadas de deliciosas confidências. Contudo, no que diz respeito à experiência de comunhão, outro fator imprescindível concorreu, juntamente com os já mencionados, para o seu acontecimento. Ora, os onze irmãos de congregação que desfrutaram as delícias oferecidas por Babette, manifestaram, após o jantar, um estado da mais pura fraternidade grupal, mas será que só a arte de Babette e o ato de usufruí-la com amigos seria a causa disso? Por que será, então, que o General Galliffet, o qual, de acordo com Lorens, “dizia que no passado havia duelado pela mão da mulher desejada, mas agora em toda França não havia uma só mulher pela qual ele arriscaria a vida com exceção da chef do Café Anglais [Babette]”, não manifestou qualquer sentimento de gratidão para com o marido e filho de Babette durante a repressão a Comuna de Paris da qual Babette fez parte juntamente com eles, ou mesmo, como nos informa a carta de Papin, com a própria Babette, “que escapou por pouco das mãos sangrentas do general Galliffet”. Talvez o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) possa nos esclarecer o que faltou ao General Galliffet e seus amigos que costumavam se deliciar com a arte de Babette, a qual bem que afirmou que podia fazê-los felizes, não obstante, é provável que sua arte jamais tenha insuflado sentimentos puramente pagãos (ainda que sob uma roupagem cristã) em seus corações tais como àqueles que preencheram os dos irmãos da congregação naquela noite encantada.


Émile Durkheim foi um dos poucos pensadores do século XIX que se contrapôs a uma visão evolucionista e positivista da religião. Para ele, a religião, longe de representar um atraso de qualquer tipo, constitui-se naquilo que justamente sustenta a sociedade como tal. Ao se deparar com as mazelas do mundo, o homem tem necessidade de encontrar forças que o ajudem a superar seus limites, e é na experiência religiosa provocada pela identificação do indivíduo com o grupo ao qual pertence que ele encontra essas forças. A religião é, portanto, a maneira como os indivíduos representam a sociedade à qual pertencem, sendo, pois, um fato eminentemente social. Por conseguinte, religião e sociedade são, para Durkheim, indissociáveis, visto que é a religião que dá força e confere solidariedade ao grupo, forjando, assim, a sociedade. Segundo Durkheim, a religião não é sinônimo de erro, mas sim a fonte de onde emanam as forças que ultrapassam o indivíduo e lhe conferem um poder ímpar mediante sua identidade com uma coletividade. Semelhante identidade advém, de acordo com Durkheim, mediante os rituais religiosos. Tais cerimônias costumam se estruturar em torno de um núcleo comum, a saber, um símbolo (ou símbolos) que representa a totalidade da consciência grupal. É, então, quando uma coletividade se une em torno de um mesmo objeto, em um sentido bem amplo (celebração de um mito, reverência a um deus, a espíritos de antepassados ou da natureza, a um ídolo, etc.), que ela se identifica consigo mesmo enquanto uma unidade, é então que o transe religioso se manifesta e todos do grupo se vêem, se sentem e se tornam um só. Como argumenta Durkheim: "As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que só surgem no interior de grupos coordenados e se destinam a suscitar, manter e refazer alguns estados mentais desses grupos" (Durkheim, Formas elementares da vida religiosa). Nos rituais religiosos, portanto, é como se o mundo cotidiano se esvaísse, e o indivíduo mergulhasse no grupo: uma só voz, um só coração, a mente é dilatada e o transe acontece. A identidade com o grupo, para Durkheim, é o que confere ao indivíduo a força necessária para o retorno ao cotidiano.

É possível que o que tenha ocorrido, pois, com os irmãos de congregação em A festa de Babette, tenha sido justamente esse transe advindo da identificação dos membros do grupo como partes de uma mesma totalidade. Esse transe despertou os mais puros sentimentos religiosos naqueles irmãos, pois era em torno de uma mesma crença em preceitos cristãos que eles formavam aquele grupo. As reações àquele banquete poderiam, então, ser as mais diversificadas possíveis: violentas, cruéis, temerárias, heróicas, eróticas, orgíacas, etc., dependendo do grupo que o estivesse deliciando. Entretanto, para um grupo manifestar esse sentimento de identificação consigo mesmo é necessário, como já foi visto, a união em torno de um mesmo objeto, isso seria, todavia, impossível sem que o grupo falasse a mesma língua , sem que o grupo se entendesse. Durkheim argumenta que um dos principais fatores que tornam o grupo coeso e que o faz falar a mesma língua é a existência de uma ameaça externa. Ora, por conta da ausência da figura do pastor, os irmãos de A festa de Babette não mais conseguiam conversar entre si. Na cena em que os irmãos se reúnem com as duas irmãs para a habitual reunião de leitura e interpretação da Bíblia, vê-se que eles não conseguem permanecer um momento sem discutirem, ofendendo-se e acusando-se mutuamente. A despeito das irmãs tentarem a todo custo resolver o problema das contendas por meio de canções (Philippa até se senta ao piano), e mesmo da admoestação de Babette (“Ora, ora, ora, uma reunião cristã?”), a reunião acaba sendo um completo fracasso. Mas o medo do desconhecido, do estrangeiro, do exótico, do outro, que os preparativos para a festa manifesta nos convidados, faz com que os mesmos finalmente voltem a ser uma mesma voz tal como talvez o fosse no tempo em que o deão ainda era vivo. Após seu terrível pesadelo, Martina reuniu a congregação e revelou seus temores: “O aniversário do meu pai pode nos expor a forças malignas. Não sei dizer que comida ela servirá”. Ante o perigo dessa “reunião satânica”, os irmãos da congregação firmam uma espécie de pacto, um deles sugere “Nos não diremos nada, nem uma palavra sobre comida e bebida”; mas outro prefere algo mais radical: “Nenhum comentário sairá de nossos lábios. Nós nos sentaremos em silêncio”; uma irmã, porém, precaveu o grupo contra a impossibilidade de algo tão extremo dizendo: "A língua, esse estranho músculo, conseguiu tantas coisas importantes e gloriosas, mas não percamos de vista o sabá das bruxas. O Príncipe das Trevas gostaria que perdêssemos o rumo de nossas idéias. O Príncipe das trevas vive com medo do Senhor. À mesa usaremos nossa língua para orar. Em gratidão por tudo o que ele significa para nós." Um outro irmão concorda e afirma: “Será como se não tivéssemos paladar” Logo em seguida, ocorre algo que já não acontecia há muito tempo: todos os irmãos se dão às mãos e começam a cantar, num primeiro sinal de que algo estava sendo transformado pelo jantar antes mesmo dele começar. Antes do início da ceia, os irmãos aguardam na sala cantando hinos em louvores a Deus. Na descrição da autora, verifica-se que os ânimos, nesse momento já estavam alterados, o grupo já dava os primeiros sinais de identificação e comunhão. Percebe-se, assim, a importância que a união do grupo em torno daquela promessa teve para que o mesmo entrasse em processo de comunhão. Durante o jantar, os irmãos não conseguiram, é óbvio, como bem havia precavido aquela irmã (no livro, um irmão), permanecer em silêncio e nem, evidentemente, como se pode ver no filme pelas suas expressões de surpresa e satisfação, anular o paladar, porém, eles ainda conseguem manter a palavra de não comentarem nada sobre o jantar especificamente enquanto estivessem sentados à mesa (elogiando-o somente bem depois de se levantarem), o que os forçou, devido à necessidade, provocada pela visão, tato e gosto sublimes da comida e pela influência da bebida, sobretudo o vinho, a falar sobre outras coisas: e o assunto preferido foi justamente o deão, seu exemplo de fé e caráter, o que lhes inspirou os mais profundos sentimentos religiosos.

Na cena do café após o jantar, podemos perceber toda a mudança operada no espírito daqueles personagens pela aura de satisfação que emana daqueles rostos luminosos e enrubescidos, ilustrando com perfeição o estado de máxima reconciliação e comunhão alcançado pelos irmãos. É muito tocante assistir aqueles irmãos de congregação, que antes não conseguiam mais estar ao lado um do outro sem discutir, pedindo desculpas e se desculpando reciprocamente. E mais emocionante ainda é ver o casal de amantes, que via a sua relação como pecaminosa por ter surgido de um adultério, beijando-se da maneira mais terna e apaixonada. Na cena do poço, transparece o estado da mais plena comunhão na atitude dos personagens em se dar às mãos ao redor daquele "eixo axial" e, tal como crianças brincado de ciranda, cantarem e dançarem juntos. Nota-se o estado da mais perfeita comunhão que aquele grupo atingiu, um estado de pura inocência e liberdade, em que toda a noção de pecado se esvaiu completamente, uma verdadeira experiência de se estar vivo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A ORIGINALIDADE DA OBRA DE ARTE



AS INFLUÊNCIAS DE JAMES CAMERON


A viúva do músico Richard Wagner, Cosima, declarou, alguns dias depois da morte de Nietzsche, que, apesar de ter lido pouco a obra do filósofo alemão, acreditava ser possível traçar de qual autor ele havia retirado cada sentença que escrevera em seus livros. A alegada falta de originalidade conferida a Nietzsche por diversos críticos e antagonistas provavelmente não seria algo que pudesse vir a surpreender ele próprio. Em um fragmento póstumo, ele chegou a declarar que a expectativa de rastrear as fontes de um autor sofre um grande abalo quando se descobre que as mesmas estão muito aquém da obra para a qual serviram de argamassa. Ademais, dada a mediocridade desse tipo de fonte, o autor utiliza-as da forma que lhe convém, com a maior liberdade possível, servindo-se das mesmas para solucionar os problemas que são específicos de seu próprio pensamento, conferindo-lhes um novo conteúdo, um novo sentido, que até então não possuíam. De fato, há sentenças utilizadas por Nietzsche que foram retiradas ipsis litteris de outros autores, e muitas vezes não só de autores medíocres, mas também de grandes autores, os mesmos que, em outras ocasiões, ele critica da maneira mais mordaz. Todavia, tais sentenças possuem, no interior de suas obras, um significado extremamente original, e específico de seu próprio pensamento. Assim, longe de se mostrar um dos maiores plagiadores de todos os tempos, Nietzsche era na verdade um grande degustador de todo um “caldo cultural” (Montinari) com que ele se nutriu, assimilando, metabolizando e transformando de maneira radicalmente nova toda a matéria prima da qual se serviu, num registro extremamente pessoal, dando origem a uma experiência de pensamento totalmente inédita e sem antecedentes. 


Antes mesmo de estrear nos cinemas, o fenômeno Avatar de James Cameron sofreu pelo menos duas acusações de plágio. Uma delas dos produtores do maior fracasso de bilheteria de 2008, a animação Delgo, cujos personagens lembram os Na’vi de Avatar e cuja história se passava num mundo em que a flora e a fauna eram bastante similares às do planeta Pandora do filme de Cameron; além disso, trechos de cenas exibidas no primeiro trailer de Avatar, eram bastante parecidas com algumas da animação. Cameron já havia perdido um processo de plágio por conta do roteiro de O exterminador do futuro, que teve como uma de suas inspirações uma obra de ficção científica de ínfima relevância da qual foi considerado uma cópia. Mas no caso de Avatar a coisa é mais grave, porque, assim como o fez Nietzsche, Cameron foi buscar inspirações não só em obras quase insignificantes, mas também em obras consagradas. Ora, não é tão difícil, para a grande maioria dos espectadores, identificar a saga de Jack Sullivan com, por exemplo, a narrativa de Pocahontas e de Dança com lobos, com as batalhas e discursos do Senhor dos anéis, além do recurso à uma natura ex machina que também foi um elemento decisivo na jornada de Frodo até Mordor. Mas pode-se mesmo falar de plágio aqui? Como qualificar um plágio? 

Creio que se um autor não faz nada além de reproduzir o espírito, o sentido e a forma já imbuídos nas fontes por ele utilizadas, não empregando nada que lhe pertença propriamente, nada de suas experiências privadas, para criar a partir delas uma obra pessoal, então, pode-se acusá-lo de plágio. Mas parece que Cameron conseguiu, como o faz um autêntico autor, digerir todas as obras de ficção científica que leu desde criança, todas as revistas em quadrinhos, artes fantásticas, mitologia e filmes com os quais se nutriu, e criou a partir disso e de toda sua experiência de vida, de todos os problemas que o assaltaram, de toda ânsia, desejos, convicções e crenças, uma obra com um sentido completamente novo, pessoal e particular, e é ao obter êxito nisso que um autor pode ser considerado de fato um criador. 

O importante não é, portanto, identificar as fontes empregadas pelo autor, mas como ele as utiliza em um novo contexto, em um novo registro, em uma nova experiência de pensamento e vida, criando uma obra completamente original, uma obra que funcione por si mesma, que tenha em si mesma um sentido, que seja bela por si, em sua completude e não em suas partes isoladas ou por conta da matéria prima com que ela foi produzida, uma obra que tenha um todo coerente e regular, em que nada destoe ou que seja relegado meramente à condição de uma peça sobressalente, tal é o caso, creio eu, de Avatar.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A INDÚSTRIA CULTURAL CHAMADA CINEMA


O ENTRETENIMENTO DE MASSA NOSSO DE CADA DIA

Para Hannah Arendt, a “cultura” de massas ou, de maneira mais precisa, o divertimento de massas representa uma portentosa ameaça para a cultura, visto que os objetos culturais perdem seu aspecto mais essencial, a saber, seu caráter imorredouro, quando transmutados em meros ben
s de consumo. A filósofa sustenta que a cultura pertence ao mundo e que, portanto, não foi gerada para ser consumida pela vida. A acusação feita por Arendt de que a monstruosa fome de diversão da sociedade de massas, alimentada pela indústria do entretenimento, conduz inexoravelmente ao fim da cultura, talvez não abarque a complexidade do fenômeno. Afinal, não deixa de ser difícil para quem, por exemplo, nasceu décadas depois da exibição nos cinemas de filmes como O idiota de Akira Kurosawa, baseado no romance homônimo de Dostoiévski, ver tais obras como relés bens de consumo e não como obras de artes e, por conseguinte, autênticos objetos culturais, pois, por que, afinal, elas ainda conseguem “apoderar-se” de um (novo) espectador e “comovê-lo”. Utilizei como exemplo o filme de Kurosawa porque trata-se da adaptação de um clássico da literatura universal feita por um cineasta extremamente pop, que manteve um eterno namoro com o cinema norte-americano. Ora, para Arendt, o artifício mais traiçoeiro da indústria de diversão está em adaptar obras clássicas para melhor digestão do público consumidor, matando, no processo, aquele objeto cultural. Contudo, apesar de serem poucos os casos em que adaptações para o cinema de obras clássicas poderem ser consideradas verdadeiras obras de arte, há casos em que o "produto" derivado se tornou tão importante para o "mundo" quanto o "objeto" do qual ele derivou. Além disso, diversas vezes, obras de menor relevância deram origem, ao serem adaptadas para outras mídias, a obras que as superam artísticamente. O poderoso chefão de Copolla, baseado no romance de Mario Puzzo, é um exemplo de uma adaptação que se tornou maior do que a própia obra original, pelo menos em termos de relevância para a história da arte. Sem contar a infinidade de obras medíocres que, ao serem adaptadas nas mão de mestres como Hitchcock, deram origem a verdadeiros "objetos culturais", categoria das quais elas mesmas não estavam e não estão incluídas. Será, portanto, que a força criativa não pode emergir ou transpassar, com mais dificuldades, decerto, mas talvez, por isso mesmo, ainda com mais pujança, os grilhões fixados pela indústria de entretenimentos? Será que uma obra artística que se esgueire por entre os corredores sujos de uma tal indústria e encontre, quiçá, a liberdade, não é muito mais digna (ou tão digna quanto as obras de arte tradicionais) da obtenção da imortalidade? Ademais, é igualmente difícil entender como se verifica essa extrema separação entre mundo e vida. Não é possível que a separação entre essas duas instâncias não seja tão radical, mas somente operacional? Que a vida não seja nada mais que uma extensão do mundo, ou mesmo, de forma mais ampla, que o que denominamos mundo não seja somente um outro âmbito da vida? Será, portanto, que o consumo não seria, na perspectiva mais abrangente possível, algo inerente a toda efetividade, tanto à vida, quanto ao mundo? Se assim for, talvez os objetos culturais sempre serviram para suprir uma necessidade orgânica de qualquer forma, talvez seja possível, então, consumi-los de uma outra maneira (e não somente como o faz a sociedade de massas), sem destruí-los, sem ameaçar sua existência, metabolisando o que neles há de imperecível, sem que sua identidade enquanto objeto cultural seja ameaçada.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

STAR WARS E MITOLOGIA



A SAGA DO HERÓI

O termo “mito” é geralmente visto como sinônimo de história falsa, sem sentido, ou imaginária. Semelhante concepção teve sua origem com o advento do pensamento filosófico na Grécia do século VI a.C.: para se contrapor ao poder aristocrático, fundamentado na tradição mitológica, os primeiros filósofos gregos impuseram duras críticas ao aspecto antropomórfico dos deuses, com o intuito de promover uma sociedade democrática, baseada no pensamento lógico-racional. Essa visão foi ratificada pelo desenvolvimento da ciência moderna e cristalizada no século XIX pelo pensamento positivista de Augusto Comte. Não obstante, a partir mesmo do século XIX, pensadores como Nietzsche, Lévi-Strauss, Cassirer, Derrida, Mircea Eliade, Jung e Campbell passaram a questionar essa concepção, argumentando que a linguagem mítica possui um sentido específico, diferente, mas não inferior, ao lógico-racional. “A coerência do mito”, esclarece Ernest Cassirer, “provém muito mais de uma unidade de sentimentos do que de regras lógicas” (Ensaios sobre o homem,). Para o mitólogo americano Joseph Campbell, o pensamento mítico, longe de representar uma farsa fantástica, revela a estrutura psicológica universal da humanidade, isto é, os modelos arquetípicos da psique humana. Sendo assim, o mito narra acontecimentos que dizem respeito a todo homem e a toda mulher, porquanto indica quais as dificuldades e os desafios que os mesmos terão de enfrentar durante a vida, e como se pode enfrentá-los. Os mitos, diz Campbell, “são os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam com os magnos problemas humanos” (O poder do mito). O mito do herói consiste na narração de uma aventura empreendida por uma personagem no reino do desconhecido. Semelhante reino, de acordo com Campbell, simboliza toda espécie de mudança que se deve enfrentar durante a vida, todo limiar que se deve atravessar: o nascimento; a passagem da infância para a adolescência; desta última para a idade adulta; o casamento; a paternidade ou a maternidade; o primeiro emprego; a chegada da velhice; a sombra da morte; etc. Esse é um dos motivos pelo qual as epopéias heróicas e as grandes histórias épicas são tão apaixonantes e atrativas – todos as culturas possuem as suas; todos os homens se sentem por elas inspirados. Não é a toa que as façanhas de um Aquiles, de um Sansão, de um rei Arthur, são até hoje narradas e queridas. A figura do herói hoje é vista como ícone de propaganda ideológica e mero produto de uma cultura de massa devido à crítica de inspiração marxista e da escola frankfurtiana, que vê em um J. F. Kennedy, em um Tiradentes, em um Homem-Aranha ou em um Harry Potter, uma só função alienadora. No entanto, o poder de atração do mito do herói é muito mais complexo, e qualquer visão reducionista obviamente nunca dará conta de explicá-lo plenamente. Portanto, entre outros fatores, o mito do herói fascina as pessoas porque as mantém motivadas, ao revelar, de maneira simbólica, a potencialidade que cada indivíduo tem de superar as dificuldades inerentes à vida. O filme Star Wars (Guerra nas Estrelas) lançado em 1977, foi, e continua sendo, um fenômeno de bilheteria em todo o mundo. Seu sucesso foi tão avassalador que inaugurou uma nova maneira de se fazer cinema em Hollywood, ficando conhecido como um dos primeiros blockbusters (arrasa quarteirão) da indústria cinematográfica, dando origem a uma franquia que já rendeu duas trilogias, diversos produtos derivados em outras mídias (spin-offs), cifras absurdas, e uma legião interminável de verdadeiros adoradores. A paixão em torno do filme é geralmente explicada como efeito de uma poderosa linguagem ideológica e de uma sofisticada estratégia de marketing. Todavia, essa visão talvez não abarque a grandiosidade do fenômeno, visto que (algo pouco lembrado) o primeiro filme da série foi realizado com parcos recursos, sem a confiança dos produtores – mesmo da equipe de atores e técnicos – e ,conseqüentemente, com uma ínfima divulgação. Mesmo assim, o filme, aos poucos, foi agradando mais e mais, até que, divulgado no "boca-a-boca", veio a se tornar o grande sucesso que continua sendo até hoje. Dessa forma, um dos fatores essenciais para a prodigiosa empreitada do diretor e roteirista George Lucas, o gênio por trás do filme, talvez seja justamente o tema mítico do herói no qual ele se baseou para elaborar a história de um jovem chamado Luke Skywalker, que sai do planeta pacato onde fora criado pelos tios, para se deparar com uma batalha intergaláctica, na qual o destino de centenas de planetas acaba ficando em suas mãos. “A minha inspiração original do filme”, revela Lucas, “era o uso de temas mitológicos para criar um novo tipo de mito, atualizado e contemporâneo” (DVD Star Wars – Episódio IV: Uma Nova Esperança, comentários em áudio). Lucas fez questão de tomar aulas com o mitólogo Joseph Campbell, um verdadeiro entusiasta da saga. A narrativa presente no episódio IV, Uma nova esperança, trás o modelo clássico da trajetória do herói na figura de Luke Skywalker. Contudo, nos filmes seguintes, vários outros temas do mito do herói são aprofundados. E, na nova trilogia, uma reviravolta, que nem mesmo o próprio Lucas de fato havia previsto, revelou-nos que o principal herói da saga era na verdade o pai de Luke, Anakin Skywalker, com sua jornada de queda e redenção, de descida ao inferno e renascimento em uma nova vida, uma faceta muito mais complexa e rica do mito heróico.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O VELHO SÁBIO


O PAPEL DO MENTOR NA JORNADO DO HERÓI

O velho sábio, o mentor ou o ancião é uma figura fundamental no mito do herói, visto que, sem a figura do velho sábio, o herói nunca poderá se formar, a criança nunca se tornará um adulto. O mito do herói pode ser interpretado como um ritual de passagem, isto é, uma de suas facetas pode ser lida basicamente como uma história de como uma criança se torna um adulto, porém, não se deve identificar a figura do velho sábio com a figura do pai, ou mesmo estabelecer uma escala de valor entre essas figuras como sendo a primeira uma mera substituição da segunda. O pai nunca poderia vir a cumprir a função do ancião, o único parente que está apto para isso é o tio (pois o avô pode, este sim, acabar sendo facilmente uma substituição da figura do pai). O pai tem suas próprias funções no mito heróico (e claro, na vida), funções que o velho sábio não poderia desempenhar e vice-versa. Um herói órfão poderá, de início, ver o velho sábio como o pai que o destino lhe roubou, mas, em um momento decisivo de sua jornada, ele deve perceber que isso não é verdade. O velho sábio não é uma substituição do pai, um pai postiço, a stepfather, ele é, juntamente com o pai e a mãe, um elemento fundamental da tríade basilar que formará o herói. Não fosse assim, as histórias não insistiriam nesse ponto crucial: o pai morreu, o jovem está só, desorientado, surge o velho sábio e lhe indica o caminho. Se o pai não morrer (ou se sua influência não for mitigada ou reelaborada na vida do jovem), o velho ancião não terá o que fazer, não baterá com o seu cajado na soleira da casa do jovem. O mentor representa uma nova fase na vida do jovem aspirante a herói, mas não como um novo pai, e sim, definitivamente, como O Velho Sábio, exercendo função absolutamente própria e inalienável. Como exemplos contemporâneos do velho sábio na cultura pop, podem-se listar: Mentor, do He-Man; Mestre dos Magos, de Caverna do Dragão; Edin, do Jaspion; Jaga, dos Thundercats; tio Ben, do Homem-Aranha; Obi Wan Kenobi, de Star Wars; Gandalf, d’O Senhor dos Anéis; o professor Xavier, dos X-Men; e Dumbledore, de Harry Potter. A ajuda do velho sábio é uma condição essencial para que o herói se forme. O mentor é quem dá ao herói a arma necessária para enfrentar os perigos de sua jornada. Muitas vezes, essa arma é uma herança paterna, como o sabre de luz que Obi Wan entrega a Luke Skywalker, ou a capa de invisibilidade que Dumbledore entrega a Harry Potter, ou o Um Anel que Gandalf passa a Frodo Bolseiro, o que mostra como o ancião não se identifica com o pai. Ora, é somente o mentor que pode transmitir ao herói - fazer ele enxergar - o poder que seu pai lhe deixou: “esse poder está nas suas mãos agora, cabe a você levá-lo adiante e saber usá-lo com prudência em sua busca pelo tesouro”. O próprio pai não poderia entregar a arma ao herói, pois este último não a aceitaria, ou não a enxergaria, ou não encontraria nenhum uso para ela. É o mentor que finalmente lhe revela, ao lhe entregar as armas, que “o seu pai se foi, você agora está só”. O ancião procura dar as instruções que mostram ao jovem o caminho que ele deverá trilhar para encontrar suas próprias forças e quais os perigos que lhe aguardam em sua jornada em busca do tesouro, mas, diferente do pai, ele não diz: “eu quero que você siga por aqui assim como eu faço”, o que ele diz é: “está vendo aquela senda?, ela é escura e tenebrosa, monstros estão à espreita em cada sombra, mas o que você quer está no fim dela, caminharei um pouco ao seu lado, mas depois você seguirá sozinho”; o pai diz: “é assim que você deve caminhar”, o ancião, por sua vez, diz: “a força do seu jeito de caminhar é esta, aprenda a usá-la corretamente”. Nas narrativas do mito do herói, a figura do pai é retratada, geralmente, como sendo mais possessiva, extremante autoritária, que teme mais pela segurança do jovem, pois não consegue enxergar a força que este possui, não consegue entender como a força do jovem se manifesta de maneira diferente da sua. Já o ancião consegue ver as especificidades da força do jovem, ele sabe quais são suas potencialidades e fraquezas, e mostra a ele como se tornar um herói, elevando suas forças pelo uso mais correto das mesmas. Não obstante, assim como o pai, o mentor também deve morrer (ou ter sua influência mitigada), e em um período bem mais curto do que o pai (pois a adolescência é mais curta, e precisa ser mais curta, do que a infância). O ancião geralmente enfrenta a primeira batalha pelo herói, e é geralmente aí que ele morre, como acontece com Obi Wan Kenobi em Star Wars ao enfrentar Darth Vader na Estrela da Morte. Assim como no caso da figura do pai, essa "morte" do ancião pode ser simbólica, ele pode simplesmente abandonar o herói e cuidar de seus próprios afazeres, como Gandalf em O Hobbit, ou cair na escuridão, como o próprio Gandalf após enfrentar o Balrog em Moria em O Senhor dos Anéis, mas ele nunca poderá seguir com o herói até o final do caminho, apesar de poder voltar a encontrá-lo no final da jornada, quando o jovem já se tornou definitivamente um herói. Sem a ajuda do velho sábio, o jovem não poderá se tornar um herói, mas, para isso, é necessário que o jovem não veja o mentor como um pai substituto ou que pelo menos em um dado momento ele obtenha essa compreensão, por outro lado, é extremamente necessário que o próprio mentor não se veja como um pai substituto, que nunca enxergue o herói como um “filho”, se isso ocorrer, ele não será um mentor, será tão-somente um pai substituto, e o jovem nunca virá a se tornar um herói.