quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A INDÚSTRIA CULTURAL CHAMADA CINEMA


O ENTRETENIMENTO DE MASSA NOSSO DE CADA DIA

Para Hannah Arendt, a “cultura” de massas ou, de maneira mais precisa, o divertimento de massas representa uma portentosa ameaça para a cultura, visto que os objetos culturais perdem seu aspecto mais essencial, a saber, seu caráter imorredouro, quando transmutados em meros ben
s de consumo. A filósofa sustenta que a cultura pertence ao mundo e que, portanto, não foi gerada para ser consumida pela vida. A acusação feita por Arendt de que a monstruosa fome de diversão da sociedade de massas, alimentada pela indústria do entretenimento, conduz inexoravelmente ao fim da cultura, talvez não abarque a complexidade do fenômeno. Afinal, não deixa de ser difícil para quem, por exemplo, nasceu décadas depois da exibição nos cinemas de filmes como O idiota de Akira Kurosawa, baseado no romance homônimo de Dostoiévski, ver tais obras como relés bens de consumo e não como obras de artes e, por conseguinte, autênticos objetos culturais, pois, por que, afinal, elas ainda conseguem “apoderar-se” de um (novo) espectador e “comovê-lo”. Utilizei como exemplo o filme de Kurosawa porque trata-se da adaptação de um clássico da literatura universal feita por um cineasta extremamente pop, que manteve um eterno namoro com o cinema norte-americano. Ora, para Arendt, o artifício mais traiçoeiro da indústria de diversão está em adaptar obras clássicas para melhor digestão do público consumidor, matando, no processo, aquele objeto cultural. Contudo, apesar de serem poucos os casos em que adaptações para o cinema de obras clássicas poderem ser consideradas verdadeiras obras de arte, há casos em que o "produto" derivado se tornou tão importante para o "mundo" quanto o "objeto" do qual ele derivou. Além disso, diversas vezes, obras de menor relevância deram origem, ao serem adaptadas para outras mídias, a obras que as superam artísticamente. O poderoso chefão de Copolla, baseado no romance de Mario Puzzo, é um exemplo de uma adaptação que se tornou maior do que a própia obra original, pelo menos em termos de relevância para a história da arte. Sem contar a infinidade de obras medíocres que, ao serem adaptadas nas mão de mestres como Hitchcock, deram origem a verdadeiros "objetos culturais", categoria das quais elas mesmas não estavam e não estão incluídas. Será, portanto, que a força criativa não pode emergir ou transpassar, com mais dificuldades, decerto, mas talvez, por isso mesmo, ainda com mais pujança, os grilhões fixados pela indústria de entretenimentos? Será que uma obra artística que se esgueire por entre os corredores sujos de uma tal indústria e encontre, quiçá, a liberdade, não é muito mais digna (ou tão digna quanto as obras de arte tradicionais) da obtenção da imortalidade? Ademais, é igualmente difícil entender como se verifica essa extrema separação entre mundo e vida. Não é possível que a separação entre essas duas instâncias não seja tão radical, mas somente operacional? Que a vida não seja nada mais que uma extensão do mundo, ou mesmo, de forma mais ampla, que o que denominamos mundo não seja somente um outro âmbito da vida? Será, portanto, que o consumo não seria, na perspectiva mais abrangente possível, algo inerente a toda efetividade, tanto à vida, quanto ao mundo? Se assim for, talvez os objetos culturais sempre serviram para suprir uma necessidade orgânica de qualquer forma, talvez seja possível, então, consumi-los de uma outra maneira (e não somente como o faz a sociedade de massas), sem destruí-los, sem ameaçar sua existência, metabolisando o que neles há de imperecível, sem que sua identidade enquanto objeto cultural seja ameaçada.

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