domingo, 31 de janeiro de 2010

TORTURA E INDECISIONISMO


AS ESCOLHAS DE JACK BAUER

A prática da tortura é moralmente condenável. Ao torturado é negada toda dignidade, todo direito natural à preservação e à segurança do próprio corpo, à opção de se negar a dar informações e de não se auto-incriminar quando inocente, de não delatar e condenar os amigos às injustiças de uma tirania; sua dor é esvaziada de todo conteúdo existencial sendo relegada a um mecanismo fisiológico que passa a ser controlado por um motivo meramente instrumental. O torturador deprava integralmente sua alma, não importa por qual motivo ele está empregando métodos racionais para causar o máximo de dor em outro ser humano, a estrutura de seu caráter é irremediavelmente corrompida por esse ato. Não obstante, até onde a experiência moral consegue dar conta da totalidade efetiva do campo de atuação humana? Existem situações extremas em que a moral não pode oferecer nenhuma solução, nas quais todo enunciado apresenta uma contradição interna e se auto-dissolve. Problemas éticos surgidos por conta das descobertas científicas, dos avanços da genética e das inovações da prática médica, apresentam atualmente diversos exemplos de situações irregulares, fora das normas, inéditas. Todavia, a falta de um solucionamento moral para vários casos desse tipo se deve muito mais a necessidade de uma maturação dos argumentos postos em debate do que a uma impossibilidade de que uma saída possa um dia ser encontrada para esses novos problemas. Muitas vezes, contudo, há casos em que a resolução do problema possui uma necessidade concreta e premente, em que a falta de uma resposta imediata irá resultar inexoravelmente em conseqüências irremediáveis e devastadoras. O terrorismo é o melhor exemplo para casos como esses. Atualmente os norte-americanos são vistos como a principal vítima dos ataques terroristas, a despeito de seu pioneirismo nessa “tática”, e suas obras de ficção exploram muito bem uma infinidade de situações imagináveis em que a tortura surge como única solução possível para a resolução de momentos decisivos, em que há uma exigência concreta de uma resposta imediata. O popular seriado americano “24 horas” (24), exibido pela rede de televisão Fox, e que já foi acusado por chefes militares de influenciar diretamente soldados americanos a praticarem tortura no Iraque, foi lançado justamente em novembro de 2001, ainda que produzido antes da queda da Torres Gêmeas. O seriado mostra em cada temporada, com vinte e quatro episódios cada, um dia na vida do agente contra-terrorista Jack Bauer (Kiefer Sutherland). O personagem já foi posto nas mais diversas situações de conflito ético, no entanto, o conflito não parece existir tanto para o agente que se depara com a concretude do problema e simplesmente toma uma decisão, mas para as autoridades fictícias da série e sobretudo para o espectador. O problema de Jack Bauer gira, na verdade, sempre em torno de como burlar as normas a fim de resolver uma situação anômala, a saída encontrada por ele é ocasionalmente a prática da tortura, da ameaça e da intimidação. Agindo quase sempre fora da lei, em todas as temporadas, Jack é obrigado a lidar tanto com a ameaça terrorista quanto com os mandados de prisão que o põe na categoria de foragido, devido justamente ao uso que ele faz de procedimentos ilegais. O personagem é sempre posto em situações em que ele deve decidir se tortura um suspeito para obter informações ou se busca outra forma de salvar a vida de centenas, milhares ou milhões de pessoas, sabendo, no entanto, que as probabilidades de obter sucesso com a última opção são irrisórias, dado a questão do limite de tempo. Não é à toa que o título do seriado é uma referência temporal, que toda estrutura dos episódios gire em torno da urgência. O espectador é constantemente informado da passagem do tempo por um cronômetro que se altera acompanhado por um som que simula batidas de um coração. Dessa forma, é dado ênfase à questão da premência de uma decisão e da ineficiência de todo debate. De fato, há situações extremas em que o debate ético precisa ser inevitavelmente, não completamente ignorado, mas ultrapassado por uma decisão de ordem política, que leve em conta a urgência da situação concreta, em que não se pode aguardar pela solução moralmente mais aceitável, mas pela solução que resolva concretamente o problema. No caso em que se deve decidir pela prática da tortura com vistas à salvação da vida de pessoas inocentes, uma solução moral nunca será dada e o debate se estenderá indefinidamente, e o indecisionismo imperará. Mas a quem compete o poder de decisão? Na ficção, podemos até estar do lado do herói por termos consciência de praticamente todos os fatores envolvidos, porém, em situações reais, o mesmo não acontece, e não anuímos com o poder de decisão conferido a qualquer um, mesmo que ele esteja mergulhado na situação, mas acreditamos que tal poder pertence somente a uma soberania verdadeira, a uma representação política genuína. Todavia, onde se poderia encontrar uma pessoa representativa por excelência?